Nas trilhas do texto
Leia trechos de um conto do escritor mineiro Murilo
Rubião, considerado por muitos o grande nome do realismo fantástico na
Literatura brasileira do século XX.
O edifício
Murilo
Rubião
“Chegará
o dia em que os teus pardieiros se transformarão em edifícios: naquele dia
ficarás fora da lei.”
Miqueias,
VII, 11.
Mais
de cem anos foram necessários para se terminar as fundações do edifício que,
segundo o manifesto de incorporação, teria ilimitado número de andares. As
especificações técnicas, cálculos e plantas, eram perfeitas, não obstante o
ceticismo com que o catedrático da Faculdade de Engenharia encarava o assunto.
Obrigado a se manifestar sobre a matéria, por alunos insatisfeitos com o tom
reticencioso do mestre, resvalava para a malícia afirmando tratar-se de “vagas
experiências de outra escola de concretagem”.
Batida
a última estaca e concluídos os alicerces, o Conselho Superior da Fundação, a
que incumbia a direção geral do empreendimento, dispensou os técnicos e
operários para, em seguida, recrutar nova equipe de profissionais e artífices.
1. A lenda
Ao
engenheiro responsável, recém-contratado, nada falaram das finalidades do
prédio. Finalidades, aliás, que pouco interessavam a João Gaspar, orgulhoso
como se encontrava de, no início da carreira, dirigir a construção do maior
arranha-céu de que se tinha notícia.
Ouviu
atentamente as instruções dos conselheiros, cujas barbas brancas, terminadas em
ponta, lhes emprestavam aspecto de severa pertinácia.
Davam-lhe
ampla liberdade, condicionando-a apenas a duas ou três normas, que deveriam ser
corretamente observadas. A sua missão não seria somente exercer funções de
natureza técnica. Envolvia toda a complexidade de um organismo singular. Os
menores detalhes do funcionamento da empresa construtora estariam a seu cargo,
cabendo-lhe proporcionar salários compensadores e constante assistência ao
operariado. Competia-lhe, ainda, evitar quaisquer motivos de desarmonia entre
os empregados. Essa diretriz, conforme lhe acentuaram, destinava-se a cumprir
importante determinação dos falecidos idealizadores do projeto e anular a lenda
corrente de que sobreviveria irremovível confusão no meio dos obreiros ao se
atingir o octingentésimo andar do edifício e, consequentemente, o malogro
definitivo do empreendimento.
No
decorrer das minuciosas explicações dos dirigentes da Fundação, o jovem
engenheiro conservou-se tranquilo, demonstrando absoluta confiança em si, e
nenhum receio quanto ao êxito das obras. Houve, todavia, uma hora em que se
perturbou ligeiramente, gaguejando uma frase ambígua. Já terminara a entrevista
e ele recolhia os papéis espalhados pela mesa, quando um dos velhos o advertiu:
–
Nesta construção não há lugar para os pretensiosos. Não pense em terminá-la,
João Gaspar. Você morrerá bem antes disso. Nós que aqui estamos constituímos o
terceiro Conselho da entidade e, como os anteriores, jamais alimentamos a
vaidade de sermos o último.
2. A advertência
A
mesma orientação que recebera dos seus superiores, o engenheiro a transmitiu
aos subordinados imediatos. Nem sequer omitiu a advertência que o encabulara. E
vendo que suas palavras tinham impressionado bem mais a seus ouvintes do que a
ele as do ancião, sentiu-se plenamente satisfeito.
3. A comissão
João
Gaspar era meticuloso e detestava improvisações. Antes de encher-se a primeira
forma de concreto, instituiu uma comissão de controle para fiscalizar o
pessoal, organizar tabelas de salários e elaborar um boletim destinado a
registrar as ocorrências do dia.
Essa
medida valeu maior rendimento de trabalho e evitou, por diversas vezes,
dissensões entre os assalariados.
A
fim de estimular a camaradagem entre os que lidavam na construção,
desenvolviam-se aos domingos alegres programas sociais. Devido a esse e outros
fatores, tudo corria tranquilamente, encaminhando-se a obra para as etapas
previstas.
De
cinquenta em cinquenta andares, João Gaspar oferecia uma festa aos empregados.
Fazia um discurso. Envelhecia.
4. O baile
Inquietante
expectativa marcou a aproximação do 800º pavimento. Redobraram-se os cuidados, triplicou-se o
número de membros da Comissão de Controle, cuja atividade se tornara
incessante, superando dificuldades, aplainando divergências. Deliberadamente,
adiou-se o baile que se realizava ao termo de cada cinquenta pisos concluídos.
Afinal,
dissiparam-se as preocupações. Haviam chegado sem embaraços ao octingentésimo
andar. O acontecimento foi comemorado com uma festa maior que as precedentes.
Pela madrugada, porém, o álcool ingerido em demasia e um incidente de pequena impor- tância provocaram um conflito de incrível violência. Homens e mulheres, indiscriminadamente, se atracaram com ferocidade, transformando o salão num amontoado de destroços. Enquanto cadeiras e garrafas cortavam o ar, o engenheiro, aflito, lutava para acalmar os ânimos. Não conseguiu. Um objeto pesado atingiu-o na cabeça, pondo fim a seus esforços conciliatórios. Quando voltou a si, o corpo ensanguentado e dolorido pelas pancadas e pontapés que recebera após a queda, sentiu-se vítima de terrível cilada. De modo inesperado, cumprira-se a antiga predição. [...]
RUBIÃO, Murilo. In: SILVERMAN, Malcolm. O
novo conto brasileiro. 2. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 231-238.
pardieiro:
casa ou edifício velho, em ruínas.
planta:
mapa, projeto, esquema para a construção
de um edifício ou casa.
ceticismo:
estado de quem duvida de tudo; descrença..
pertinácia:
persistência; obstinação, teimosia.
octingentésimo:
800º = que ocupa, numa sequência, a
posição do número oitocentos.
malogro:
fracasso; falta de êxito; insucesso.
meticuloso:
detalhista; que se preocupa com
pormenores; minucioso, cuidadoso, cauteloso.
dissensão:
desentendimento; divergência de opiniões
ou de interesse; desavença, dissidência; oposição.
Murilo Eugênio Rubião (1916-1991), contista considerado por alguns
estudiosos o precursor do realismo mágico na Literatura brasileira, nasceu em
Carmo de Minas (MG) e faleceu em Belo Horizonte (MG). Formado em Direito, foi
nomeado adido cultural do Brasil na Espanha em 1956. Foi também jornalista e
fundador do Suplemento Literário de Minas
Gerais, jornal
literário de grande importância na divulgação dos novos autores que surgiram no
país a partir da década de 1960. Seus livros de contos são O ex-mágico (1947), A estrela vermelha (1953), Os dragões e outros contos (1965), O
pirotécnico Zacarias (1974), O convidado (1974), A casa do girassol vermelho (1978), entre outros.
Daniel
Klein
Para mais informações a respeito da vida
e da obra de Murilo Rubião, acesse:
<www.murilorubiao.com.br>.
Acesso em: 16 fev. 2016.
1
Explique no caderno a alternativa que não se
refere aos temas presentes no trecho que você leu.
a)
Aspectos absurdos e fantásticos da vida.
b)
Alienação motivada por trabalho mecânico e
obsessivo.
c)
Possibilidade de controle da criação.
d)
Impossibilidade de mudar a realidade.
e)
Transmissão de obras para outras gerações.
2
Que elementos desse trecho do conto “O
edifício” extrapolam a realidade, ou seja, podem ser considerados fantásticos, absurdos ou extraordinários?
3
Releia o terceiro parágrafo da parte 1,
“A lenda”. Como você interpreta as exigências e recomendações feitas a João
Gaspar pelos dirigentes da Fundação?
4
Quantos andares foram concluídos até o
trecho do conto que você leu?
5
Leia:
Epígrafe, no contexto
literário, é uma frase ou texto, geralmente de outro autor, colocado no início
de um livro, capítulo, conto, poema etc. para lhe dar apoio temático ou
resumir-lhe o sentido ou a motivação.
Os contos de Murilo Rubião costumam ser precedidos de
epígrafes bíblicas. No conto “O edifício”, a epígrafe é uma profecia, uma
advertência. Com qual trecho da parte 4, “O baile”, a epígrafe do conto
dialoga?
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