terça-feira, 17 de agosto de 2021

1º ano - 17 de agosto de 2021

 

Nas trilhas do texto

Leia trechos de um conto do escritor mineiro Murilo Rubião, considerado por muitos o grande nome do realismo fantástico na Literatura brasileira do século XX.

O edifício

Murilo Rubião

“Chegará o dia em que os teus pardieiros se transformarão em edifícios: naquele dia ficarás fora da lei.”

Miqueias, VII, 11.

Mais de cem anos foram necessários para se terminar as fundações do edifício que, segundo o manifesto de incorporação, teria ilimitado número de andares. As especificações técnicas, cálculos e plantas, eram perfeitas, não obstante o ceticismo com que o catedrático da Faculdade de Engenharia encarava o assunto. Obrigado a se manifestar sobre a matéria, por alunos insatisfeitos com o tom reticencioso do mestre, resvalava para a malícia afirmando tratar-se de “vagas experiências de outra escola de concretagem”.

Batida a última estaca e concluídos os alicerces, o Conselho Superior da Fundação, a que incumbia a direção geral do empreendimento, dispensou os técnicos e operários para, em seguida, recrutar nova equipe de profissionais e artífices.

1. A lenda

Ao engenheiro responsável, recém-contratado, nada falaram das finalidades do prédio. Finalidades, aliás, que pouco interessavam a João Gaspar, orgulhoso como se encontrava de, no início da carreira, dirigir a construção do maior arranha-céu de que se tinha notícia.

Ouviu atentamente as instruções dos conselheiros, cujas barbas brancas, terminadas em ponta, lhes emprestavam aspecto de severa pertinácia.

Davam-lhe ampla liberdade, condicionando-a apenas a duas ou três normas, que deveriam ser corretamente observadas. A sua missão não seria somente exercer funções de natureza técnica. Envolvia toda a complexidade de um organismo singular. Os menores detalhes do funcionamento da empresa construtora estariam a seu cargo, cabendo-lhe proporcionar salários compensadores e constante assistência ao operariado. Competia-lhe, ainda, evitar quaisquer motivos de desarmonia entre os empregados. Essa diretriz, conforme lhe acentuaram, destinava-se a cumprir importante determinação dos falecidos idealizadores do projeto e anular a lenda corrente de que sobreviveria irremovível confusão no meio dos obreiros ao se atingir o octingentésimo andar do edifício e, consequentemente, o malogro definitivo do empreendimento.

No decorrer das minuciosas explicações dos dirigentes da Fundação, o jovem engenheiro conservou-se tranquilo, demonstrando absoluta confiança em si, e nenhum receio quanto ao êxito das obras. Houve, todavia, uma hora em que se perturbou ligeiramente, gaguejando uma frase ambígua. Já terminara a entrevista e ele recolhia os papéis espalhados pela mesa, quando um dos velhos o advertiu:

– Nesta construção não há lugar para os pretensiosos. Não pense em terminá-la, João Gaspar. Você morrerá bem antes disso. Nós que aqui estamos constituímos o terceiro Conselho da entidade e, como os anteriores, jamais alimentamos a vaidade de sermos o último.

2. A advertência

A mesma orientação que recebera dos seus superiores, o engenheiro a transmitiu aos subordinados imediatos. Nem sequer omitiu a advertência que o encabulara. E vendo que suas palavras tinham impressionado bem mais a seus ouvintes do que a ele as do ancião, sentiu-se plenamente satisfeito.

3. A comissão

João Gaspar era meticuloso e detestava improvisações. Antes de encher-se a primeira forma de concreto, instituiu uma comissão de controle para fiscalizar o pessoal, organizar tabelas de salários e elaborar um boletim destinado a registrar as ocorrências do dia.

Essa medida valeu maior rendimento de trabalho e evitou, por diversas vezes, dissensões entre os assalariados.

A fim de estimular a camaradagem entre os que lidavam na construção, desenvolviam-se aos domingos alegres programas sociais. Devido a esse e outros fatores, tudo corria tranquilamente, encaminhando-se a obra para as etapas previstas.

De cinquenta em cinquenta andares, João Gaspar oferecia uma festa aos empregados. Fazia um discurso. Envelhecia.

4. O baile

Inquietante expectativa marcou a aproximação do 800º pavimento. Redobraram-se os cuidados, triplicou-se o número de membros da Comissão de Controle, cuja atividade se tornara incessante, superando dificuldades, aplainando divergências. Deliberadamente, adiou-se o baile que se realizava ao termo de cada cinquenta pisos concluídos.

Afinal, dissiparam-se as preocupações. Haviam chegado sem embaraços ao octingentésimo andar. O acontecimento foi comemorado com uma festa maior que as precedentes.

Pela madrugada, porém, o álcool ingerido em demasia e um incidente de pequena impor- tância provocaram um conflito de incrível violência. Homens e mulheres, indiscriminadamente, se atracaram com ferocidade, transformando o salão num amontoado de destroços. Enquanto cadeiras e garrafas cortavam o ar, o engenheiro, aflito, lutava para acalmar os ânimos. Não conseguiu. Um objeto pesado atingiu-o na cabeça, pondo fim a seus esforços conciliatórios. Quando voltou a si, o corpo ensanguentado e dolorido pelas pancadas e pontapés que recebera após a queda, sentiu-se vítima de terrível cilada. De modo inesperado, cumprira-se a antiga predição. [...]

RUBIÃO, Murilo. In: SILVERMAN, Malcolm. O novo conto brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 231-238.

pardieiro: casa ou edifício velho, em ruínas.
planta: mapa, projeto, esquema para a construção de um edifício ou casa.
ceticismo: estado de quem duvida de tudo; descrença..
pertinácia: persistência; obstinação, teimosia.
octingentésimo: 800º = que ocupa, numa sequência, a posição do número oitocentos.
malogro: fracasso; falta de êxito; insucesso.
meticuloso: detalhista; que se preocupa com pormenores; minucioso, cuidadoso, cauteloso.
dissensão: desentendimento; divergência de opiniões ou de interesse; desavença, dissidência; oposição.

Murilo Eugênio Rubião (1916-1991), contista considerado por alguns estudiosos o precursor do realismo mágico na Literatura brasileira, nasceu em Carmo de Minas (MG) e faleceu em Belo Horizonte (MG). Formado em Direito, foi nomeado adido cultural do Brasil na Espanha em 1956. Foi também jornalista e fundador do Suplemento Literário de Minas Gerais, jornal literário de grande importância na divulgação dos novos autores que surgiram no país a partir da década de 1960. Seus livros de contos são O ex-mágico (1947), A estrela vermelha (1953), Os dragões e outros contos (1965), O pirotécnico Zacarias (1974), O convidado (1974), A casa do girassol vermelho (1978), entre outros.

Daniel Klein

Para mais informações a respeito da vida e da obra de Murilo Rubião, acesse:

<www.murilorubiao.com.br>. Acesso em: 16 fev. 2016.

1 Explique no caderno a alternativa que não se refere aos temas presentes no trecho que você leu.

a) Aspectos absurdos e fantásticos da vida.

b) Alienação motivada por trabalho mecânico e obsessivo.

c) Possibilidade de controle da criação.

d) Impossibilidade de mudar a realidade.

e) Transmissão de obras para outras gerações.

2 Que elementos desse trecho do conto “O edifício” extrapolam a realidade, ou seja, podem ser considerados fantásticos, absurdos ou extraordinários?

3 Releia o terceiro parágrafo da parte 1, “A lenda”. Como você interpreta as exigências e recomendações feitas a João Gaspar pelos dirigentes da Fundação?

4 Quantos andares foram concluídos até o trecho do conto que você leu?

5 Leia:

Epígrafe, no contexto literário, é uma frase ou texto, geralmente de outro autor, colocado no início de um livro, capítulo, conto, poema etc. para lhe dar apoio temático ou resumir-lhe o sentido ou a motivação.

Os contos de Murilo Rubião costumam ser precedidos de epígrafes bíblicas. No conto “O edifício”, a epígrafe é uma profecia, uma advertência. Com qual trecho da parte 4, “O baile”, a epígrafe do conto dialoga?

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.

Lapbook Catar (QATAR)

Lapbook: Comidas típicas: Doha tem uma diversidade gastronômica internacional tão grande que pode ser difícil encontrar pratos típicos do Ca...