quarta-feira, 18 de agosto de 2021

1º ANO - LEITURA E INTERPRETAÇÃO - 18 DE AGOSTO DE 2021

 Leia a seguir um conto desse autor.

A carteira de crocodilo

Mia Couto

A Senhora Dona Francisca Júlia Sacramento, esposa do governador-geral, excelenciava-se pelos salões, em beneficentes chás e filantrópicas canastas. Exibia a carteirinha que o marido lhe trouxera das outras Áfricas, toda em substância de pele de crocodilo. As amigas se raspavam de inveja, incapazes de disfarce. Até a bílis lhes escorria pelos olhos. Motivadas pela desfaçatez, elas comentavam: o bichonho, assim tão desfolhado, não teria sofrido imensamente? Tal dermificina não seria contra os católicos mandamentos?

– E com o problema das insolações, o bicho, assim esburacado, apanhando em cheio os ultravioletas...

– Cale-se, Clementina.

Mas o governador Sacramento também se havia contemplado a ele mesmo. Adquirira um par de sapatos feitos com pele de cobra. O casal calçava do reino animal, feitos pássaros que têm os pés cobertos de escamas. Certo dia, uma das nobres damas trouxe a catastrágica novidade. O governador-geral contraíra grave e irremediável viuvez. A esposa, coitada, fora comida inteira, incluído corpo, sapatos, colares e outros anexos.

– Foi comida mas... pelo marido, supõe-se?

– Cale-se, Clementina.

Mas qual marido? Tinha sido o crocodilo, o monstruoso carnibal. Que horror, com aqueles dentes capazes de arrepiar tubarões.

– Um crocodilo no Palácio?

– Clemente-se, Clementina.

O monstro de onde surgira? Imagine-se, tinha emergido da carteira, transfigurado, reencarnado, assombrado. Acontecera em instantâneo momento: a malograda ia tirar algo da mala e sentiu que ela se movia, esquiviva. Tentou assegurá-la: tarde e de mais. Foi só tempo de avistar a dentição triangulosa, língua amarela no breu da boca. No resto, os testemunhadores nem presenciaram. O sáurio se eminenciou a olhos imprevistos.

E o governador, sob o peso da desgraça? O homem ia de rota abatida. Lágrimas catarateavam pelo rosto. O dirigente recebeu o desfile das condolências. Vieram íntimos e ilustres. A todos ele cumprimentou, reservado, invisivelmente emocionado. Os visitantes se juntaram no nobre salão, aguardando palavras do dirigente. O governador avançou para o centro e anunciou não o luto mas, espantem-se cristãos, a inadiável condecoração do crocodilo. Em nome da protecção das espécies, explicou. A bem da ecologia faunística, acrescentou.

No princípio, houve relutâncias, demoras no entendimento. Mas logo os aplausos abafaram as restantes palavras. O que sucedeu, então, foi o inacreditável. O governador Sacramento suspendeu a palavra e espreitou o chão que o sustinha. Pedindo urgentes desculpas ele se sentou no estrado e se apressou a tirar os sapatos. Entre a audiência ainda alguém vaticinou:

– Vai ver que os sapatos se convertem em cobra...

– Clementina!

Sucedeu exactamente o inverso. O ilustre nem teve tempo de desapertar os atacadores. Perante um espanto ainda mais geral que o título do governador, se viu o honroso indignitário a converter-se em serpente. Começou pela língua, afilada e bífida, em rápidas excursões da boca. Depois, se lhe extinguiram os quase totais membros, o homem, todo ele, um tronco em flor. Caiu desamparado no mármore do palácio e ainda se ouviu seu grito:

– Ajudem-me!

Ninguém, porém, avivou músculo que fosse. Porque, logo e ali, o mutante mutilado, em total mutismo, se começou a enredar pelo suporte do microfone. Enquanto serpenteava pelo ferro ele se desnudava, libertadas as vestes como se foram uma desempregada pele. O governador finalizava elegâncias de cobra. O ofídio se manteve hasteado no microfone, depois largou-se. Quando se aguardava que se desmoronasse, afinal, o governador encobrado desatou a caminhar. Porque de humano lhe restavam apenas os pés, esses mesmos que ele cobrira de ornamento serpentífero.

– Não aplauda, Clementina, por amor de Deus!

Irina Borsuchenko

COUTO, Mia. Contos do nascer da Terra. 3. ed. Lisboa: Editorial Caminho, 1997. p. 101-103.

canasta: jogo de cartas de baralho também chamado, no Brasil, de canastra ou tranca.
desfaçatez: descaramento, cinismo; falta de vergonha ou de pudor.
atacador: cordão, cadarço.
bífida: fendida ou separada em duas partes, como a língua das serpentes.
serpentífero: relativo a uma situação em que há ou em que se produz serpente ou cobra venenosa.

António Emílio Leite Couto, o Mia Couto, nasceu na Beira, em Moçambique, em 1955. Além de escritor, atuou como jornalista e biólogo. Em sua obra, fundem-se o imaginário do autor e o imaginário do povo moçambicano. Um dos escritores mais conhecidos da África e da prosa de língua portuguesa contemporânea, é autor de vários livros de narrativas curtas (contos e crônicas), como Cronicando (1988), Cada homem é uma raça (1990), Estórias abensonhadas (1994), Contos do nascer da Terra (1997), Na berma de nenhuma estrada (2001), O fio das missangas (2003), O país do queixa andar (2005), Pensatentos (2005), E se Obama fosse africano? e Outras interinvenções (2009). Entre seus romances, destacam-se Terra sonâmbula (1994), considerado um dos melhores livros africanos do século XX, A varanda do frangipani (1996), Vinte e zinco (1999), Mar me quer (2000), Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2002), O outro pé da sereia (2006), Venenos de Deus, remédios do Diabo (2008), Jerusalém, com o título de Antes do nascer do mundo no Brasil (2009).

Daniel Klein


ATIVIDADE DE HOJE

1 Leia as informações a seguir:

Para entender a obra

A República de Moçambique, cuja capital é Maputo, situa-se na costa sudeste do continente africano. Foi uma colônia portuguesa e tornou-se independente em 25 de junho de 1975. Segundo estudos arqueológicos, os povos bantu se fixaram nessa região entre os séculos I e V. Além de agricultores, eles dominavam a metalurgia, ciência que estuda os processos de extração de metais e seu uso industrial ou a arte de trabalhar metais. Os portugueses chegaram pela primeira vez em Moçambique em 1497.

Com base nessas informações, quem representariam as personagens governador-geral, Sacramento; sua mulher, Dona Francisca Júlia Sacramento; suas amigas; e os “íntimos e ilustres”?

2 Segundo estudiosos, esse conto (assim como “O edifício”, de Murilo Rubião) é filiado ao realismo fantástico.

a) Que elementos desse conto de Mia Couto extrapolam a realidade, ou seja, podem ser considerados fantásticos?

b) Como você interpreta a presença desses elementos fantásticos no conto “A carteira de crocodilo”?

c) O que o crocodilo e a serpente simbolizam no contexto?

d) Que sentimentos, ações humanas e fatos reais são tematizados nesse conto?

3 Releia e explique no caderno cada um dos trechos a seguir:

a) A Senhora Dona Francisca Júlia Sacramento, esposa do governador-geral, excelenciava-se pelos salões, em beneficentes chás e filantrópicas canastas. Exibia a carteirinha que o marido lhe trouxera das outras Áfricas, toda em substância de pele de crocodilo.

b) As amigas se raspavam de inveja, incapazes de disfarce. Até a bílis lhes escorria pelos olhos. Motivadas pela desfaçatez, elas comentavam: o bichonho, assim tão desfolhado, não teria sofrido imensamente? Tal dermificina não seria contra os católicos mandamentos?

– E com o problema das insolações, o bicho, assim esburacado, apanhando em cheio os ultravioletas...

c) E o governador, sob o peso da desgraça? O homem ia de rota abatida. Lágrimas catarateavam pelo rosto. O dirigente recebeu o desfile das condolências. Vieram íntimos e ilustres. A todos ele cumprimentou, reservado, invisivelmente emocionado. Os visitantes se juntaram no nobre salão, aguardando palavras do dirigente. O governador avançou para o centro e anunciou não o luto mas, espantem-se cristãos, a inadiável condecoração do crocodilo. Em nome da protecção das espécies, explicou. A bem da ecologia faunística, acrescentou.

d) – Cale-se, Clementina.; – Clemente-se, Clementina.; – Não aplauda, Clementina, por amor de Deus!

4 Baseando-se nos trechos lidos na atividade 3, responda:

Nesse conto, o narrador de terceira pessoa é neutro, ou seja, ele só narra o que presencia, ou se posiciona perante os fatos? Explique sua resposta.

5 O texto apresenta a voz do narrador, a do governador, a de uma personagem anônima que se dirige à personagem Clementina, fazendo-lhe advertências. Pelas advertências, é possível inferir a voz da personagem Clementina.

a) Quem Clementina pode representar?

b) O que a voz da personagem anônima pode representar?


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