ATIVIDADE 4 (SÁBADO LETIVO): AULA DE LEITURA TEXTO (05/09)
Leia o texto abaixo para responder o que se pede:
A última crônica
Fernando
Sabino
A caminho de
casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na
realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta.
Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do
pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher
da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que
a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta
perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de
uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a
noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café,
enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: “assim eu quereria o meu
último poema”. Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar
fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do
botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de
mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção
de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de
seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se
instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os
olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno
à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém,
que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a
observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do
bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão
um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel,
vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve,
concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher
suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua
presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás
do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho – um bolo
simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.
A negrinha,
contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o
garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai,
mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa
de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma
caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um
animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três
velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do
bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as
velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e
sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito
compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos:
“Parabéns pra você, parabéns pra você…”. Depois a mãe recolhe as velas, torna a
guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos
sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura –
ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao
colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer
intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos
olhos se encontram, ele se perturba, constrangido – vacila, ameaça abaixar a
cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu
quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.
Elenco de cronistas modernos. 21ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.
èApós
ler a crônica, escolha um parágrafo em que o cronista conseguiu mexer com suas
emoções. E justifique sua resposta.
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