Leia a seguir a crônica que dá título a um de seus
livros, publicada em 1960.
Ai de ti, Copacabana
Rubem
Braga
1.
Ai de ti, Copacabana, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a
véspera de teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as
entranhas.
2.
Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua
fronte com uma coroa de mentiras; e deste risadas ébrias e vãs no seio da
noite.
3.
Já movi o mar de uma parte e de outra parte, e suas ondas tomaram o Leme e o
Arpoador, e tu não viste este sinal; estás perdida e cega no meio de tuas
iniquidades e de tua malícia.
4.
Sem Leme, quem te governará? Foste iníqua perante o oceano, e o oceano mandará
sobre ti a multidão de suas ondas.
5.
Grandes são teus edifícios de cimento, e eles se postam diante do mar qual alta
muralha desafiando o mar; mas eles se abaterão.
6.
E os escuros peixes nadarão nas tuas ruas e a vasa fétida das marés cobrirá tua
face; e o setentrião lançará as ondas sobre ti num referver de espumas qual um
bando de carneiros em pânico, até morder a aba de teus morros; e todas as
muralhas ruirão.
7.
E os polvos habitarão os teus porões e as negras jamantas as tuas lojas de
decorações; e os meros se entocarão em tuas galerias, desde Menescal até
Alaska.
8.
Foste iníqua perante o oceano, e o oceano mandará sobre ti a multidão de suas
ondas. Então quem especulará sobre o metro quadrado de teu terreno? Pois na
verdade não haverá terreno algum.
9.
Ai daqueles que dormem em leitos de pau-marfim nas câmaras refrigeradas e
desprezam o vento e o ar do Senhor, e não obedecem à lei do verão.
10.
Ai daqueles que passam em seus cadilaques buzinando alto, pois não terão tanta
pressa quando virem pela frente a hora da provação.
11.
Tuas donzelas se estendem na areia e passam no corpo óleos odoríferos para
tostar a tez, e teus mancebos fazem das lambretas instrumentos de
concupiscência.
12.
Uivai, mancebos, e clamai, mocinhas, e rebolai-vos na cinza, porque já se
cumpriram vossos dias, e eu vos quebrantarei.
13.
Ai de ti, Copacabana, porque os badejos e as garoupas estarão nos poços de teus
elevadores, e os meninos do morro, quando for chegado o tempo das tainhas,
jogarão tarrafas no Canal do Cantagalo; ou lançarão suas linhas dos altos do
Babilônia.
14.
E os pequenos peixes que habitam os aquários de vidro serão libertados para
todo o número de suas gerações.
15.
Por que rezais em vossos templos, fariseus de Copacabana, e levais flores para
Iemanjá no meio da noite? Acaso eu não conheço a multidão de vossos pecados?
16.
Antes de te perder eu agravarei a tua demência – ai de ti, Copacabana! Os
gentios de teus morros descerão uivando sobre ti, e os canhões de teu próprio
Forte se voltarão contra teu corpo, e troarão; mas a água salgada levará
milênios para lavar os teus pecados de um só verão.
17.
E tu, Oscar, filho de Ornstein, ouve a minha ordem: reserva para Iemanjá os
mais espaçosos aposentos de teu palácio, porque ali, entre algas, ela habitará.
18.
E no Petit Club os siris comerão cabeças de homens fritas na casca; e Sacha, o
homem-rã, tocará piano submarino para fantasmas de mulheres silenciosas e
verdes, cujos nomes passaram muitos anos nas colunas dos cronistas, no tempo em
que havia colunas e havia cronistas.
19.
Pois grande foi a tua vaidade, Copacabana, e fundas foram as tuas mazelas; já
se incendiou o Vogue, e não viste o sinal, e já mandei tragar as areias do Leme
e ainda não vês o sinal. Pois o fogo e a água te consumirão.
20.
A rapina de teus mercadores e a libação de teus perdidos; e a ostentação da
hetaira do Posto Cinco, em cujos diamantes se coagularam as lágrimas de mil
meninas miseráveis – tudo passará.
21.
Assim qual escuro alfanje a nadadeira dos imensos cações passará ao lado de
tuas antenas de televisão; porém muitos peixes morrerão por se banharem no
uísque falsificado de teus bares.
22.
Pinta-te qual mulher pública e coloca todas as tuas joias, e aviva o verniz de
tuas unhas e canta a tua última canção pecaminosa, pois em verdade é tarde para
a prece; e que estremeça o teu corpo fino e cheio de máculas, desde o Edifício
Olinda até a sede dos Marimbás porque eis que sobre ele vai a minha fúria, e o
destruirá. Canta a tua última canção, Copacabana!
Rio,
janeiro, 1958.
BRAGA, Rubem. Ai de ti, Copacabana. 13.
ed. Rio de Janeiro: Record, 1996. p. 80-83.
1
Caracterize o narrador de “Ai de ti,
Copacabana” usando passagens da crônica.
2
A quem o narrador se dirige? Com que
objetivo?
3
“Ai de ti, Copacabana” é uma crônica
intertextual. Releia estes trechos:
Ai
de ti; referver de espumas; bando de carneiros em pânico; as muralhas ruirão; a
hora da provação; Por que rezais em vossos templos, fariseus [...]; a multidão
de vossos pecados; porque eis que sobre ele vai a minha fúria, e o destruirá;
Pois o fogo e a água te consumirão.
Com qual texto a crônica dialoga? Justifique.
4
Explique a presença de numeração nos
parágrafos.
5
O que o narrador de “Ai de ti,
Copacabana” expressa por meio do texto?
a)
Ironia e rancor.
b)
Ameaça e lamento.
c)
Desprezo e horror.
d)
Queixa e dor.
e)
Arrogância e alerta.
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