* Copiar perguntas e respostas.
TEXTO
Nas trilhas do texto
Você vai encontrar respostas para as perguntas
anteriores lendo um trecho de
A língua de Eulália, “novela sociolinguística” de Marcos Bagno.
Que língua é essa?
Marcos
Bagno
O mito e a realidade; o errado e o diferente; o eu e o
outro
O mito da língua única
À
noite, como ficou combinado, reúnem-se todas na sala grande da lareira,
devidamente acesa. Diante do fogo há um largo tapete felpudo sobre o qual foram
espalhadas algumas almofadas grandes e macias. No centro, uma mesinha baixa com
um bule de chá, outro de chocolate, canecas de louça branca, um prato com
biscoitinhos, outro com um apetitoso bolo inglês. [...]
–
E então, essa aula começa ou não começa? – pergunta Sílvia, tornando a encher a
xícara de chocolate.
–
Aula? – surpreende-se Irene. – Eu tinha pensado só num bate-papo, nada de muito
sério... Afinal, estamos todas de férias, não é? – e pisca um olho para a
sobrinha.
–
Mas bater papo com alguém que sabe a
Divina comédia de
cor vale por uma aula... – diz Emília. Sorriso geral. – Já que você insiste,
vamos começar – diz Irene. – E quero começar pedindo a vocês que me respondam:
“Quantas línguas se fala no Brasil?”.
Silêncio.
As três, tímidas, não ousam arriscar uma resposta. Emília cutuca Vera com o
cotovelo e diz:
–
Vera, você faz Letras: é obrigada a saber a resposta...
Vera,
assim convocada em seus brios acadêmicos, pigarreia e diz:
–
Bom, o que a gente aprende na escola, desde pequena, é que no Brasil só se fala
português.
–
Isso mesmo – confirma Sílvia. – No Brasil a gente fala português de Norte a
Sul.
Irene
escuta com atenção. Depois começa a falar:
–
É bem a resposta que eu esperava. E não havia por que ser diferente. Meninas,
na tradição de ensino da língua portuguesa no Brasil existe um mito que há
muito tempo vem causando um sério estrago na nossa educação.
–
Que mito é esse, tia?
–
É o mito da unidade
linguística do Brasil.
As
três moças se entreolham, surpresas. Irene prossegue:
–
O mito da unidade linguística do Brasil pode ser resumido na resposta que a
Vera e a Sílvia me deram agora há pouco: “No Brasil só se fala uma língua, o
português”. Um mito, entre outras definições possíveis, é uma ideia falsa, sem correspondente
na realidade.
–
Quer dizer que a resposta delas é falsa, mentirosa? – pergunta Emília.
–
Exatamente – responde Irene.
–
E por quê, tia?
–
Primeiro, no Brasil não se
fala uma só língua.
Existem
mais de duzentas línguas ainda faladas em diversos pontos do país pelos
sobreviventes das antigas nações indígenas. Além disso, muitas comunidades de
imigrantes estrangeiros mantêm viva a língua de seus ancestrais: coreanos,
japoneses, alemães, italianos etc.
–
Mas os índios são muito poucos e vivem isolados – replica Sílvia.
–
É, e as comunidades de imigrantes também são uma minoria dentro do conjunto
total da população brasileira – completa Emília.
–
A língua mais usada, mais falada, mais escrita é mesmo o português – conclui
Vera.
–
Pode ser – diz Irene. – Mas mesmo deixando de lado os índios e os imigrantes,
nem por isso a gente pode dizer que no Brasil só se fala uma única língua.
Talvez vocês se surpreendam com o que vou dizer agora, mas não existe nenhuma língua que
seja uma só.
–
Como assim, Irene? – pergunta Emília, espantada. – Que quer dizer isso?
–
Isso quer dizer que aquilo que a gente chama, por comodidade, de português não é um bloco compacto, sólido e
firme, mas sim um conjunto de “coisas” aparentadas entre si, mas com algumas
diferenças. Essas “coisas” são chamadas variedades.
Página
206
Toda língua varia
–
Puxa vida, estou entendendo cada vez menos – queixa-se Sílvia.
–
Vamos bem devagar para as coisas ficarem claras – propõe Irene. – Você
certamente já ouviu um português falar, não é?
–
Já – responde Sílvia.
–
Já percebeu as muitas diferenças que existem entre o modo de falar do português
e o modo de falar nosso, brasileiro. De que tipo são essas diferenças? Vamos
ver algumas delas:
•
diferenças fonéticas (no modo de pronunciar os sons da
língua): o brasileiro diz eu
sei, o português diz eu
sâi;
•
diferenças sintáticas (no modo de organizar as frases,
as orações e as partes que as compõem): nós no Brasil dizemos estou falando com você; em
Portugal eles dizem estou
a falar consigo;
•
diferenças lexicais (palavras que existem lá e não existem
cá, e vice-versa): o português chama de saloio aquele
habitante da zona rural, que no Brasil a gente chama de caipira, capiau, matuto;
•
diferenças semânticas (no significado das palavras): cuecas em Portugal são as calcinhas das brasileiras. Imagine uma
mulher entrar numa loja de São Paulo e pedir cuecas para
ela usar! Vai causar o maior espanto!
•
diferenças no uso da língua. Por exemplo, você se chama Sílvia e um
português muito amigo seu quer convidar você para jantar. Ele provavelmente vai
perguntar: “A Sílvia janta conosco?”. Se você não estiver acostumada com esse
uso diferente, poderá pensar que ele está falando de uma outra Sílvia, e não de
você. Porque, no Brasil, um amigo faria o mesmo convite mais ou menos assim:
“Sílvia, você quer jantar com a gente?”. Nós não temos, como os portugueses, o
hábito de falar diretamente com alguém como se esse alguém fosse uma terceira
pessoa...
–
Tudo bem até agora? – pergunta Irene.
–
Tudo bem – responde Sílvia.
–
Essas e outras diferenças – prossegue Irene – também existem, em grau menor,
entre o português falado no Norte-Nordeste do Brasil e o falado no Centro-Sul,
por exemplo. Dentro do Centro-Sul existem diferenças entre o falar, digamos, do
carioca e o falar do paulistano. E assim por diante.
Irene
faz uma pequena pausa. Toma um gole de chá e continua:
–
Até agora, falamos das variedades
geográficas: a variedade portuguesa, a variedade brasileira, a variedade
brasileira do Norte, a variedade brasileira do Sul, a variedade carioca, a
variedade paulistana... Mas a coisa não para por aí. A língua também fica
diferente quando é falada por um homem ou por uma mulher, por uma criança ou
por um adulto, por uma pessoa alfabetizada ou por uma não alfabetizada, por uma
pessoa de classe alta ou por uma pessoa de classe média ou baixa, por um
morador da cidade e por um morador do campo e assim por diante. Temos então, ao
lado das variedades geográficas, outros tipos de variedades: de gênero, socioeconômicas,
etárias, de nível de instrução, urbanas, rurais etc.
–
E cada uma dessas variedades equivale a uma língua? – pergunta Emília.
–
Mais ou menos – responde Irene. – Na verdade, se quiséssemos ser exatas e
precisas na hora de dar nome a uma língua, teríamos de dizer, por exemplo,
falando da Vera: “Esta é a língua portuguesa, falada no Brasil, em 2001, na
região Sudeste, no estado e na cidade de São Paulo, por uma pessoa branca, de
21 anos, de classe média, professora pri
Toda língua muda
–
Deu pra entender o que é uma variedade, Sílvia? – pergunta Irene.
–
Deu, sim, é até mais fácil do que eu pensava – responde a estudante de
Psicologia.
Irene
dá um sorriso maroto e fingindo um tom de ameaça anuncia:
–
Mas a coisa pode ficar ainda mais complicada...
–
Como, tia?
–
Pegue, por exemplo, um texto de jornal escrito no começo do século XX. Você vai
sentir diferenças no vocabulário e no modo de construção da frase. Recue mais
um pouco no tempo e tente encontrar alguma coisa escrita no começo do século
XIX, em 1808, por exemplo, quando a família real portuguesa se transferiu para
o Brasil. Mais diferenças ainda. Dê um salto ainda maior e tente ler a famosa
carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel dando a notícia do descobrimento
do Brasil. Um texto de 1500, último ano do século XV! Tem muita coisa ali que a
gente nem consegue entender! E se quiséssemos ler uma cantiga d’amor, como a que citei hoje à
tarde, que era um gênero de poesia praticado em Portugal nos séculos XII- XIII?
Quase impossível: só mesmo com a ajuda e a orientação de um filólogo,
especialista em textos antigos! O que todos esses textos têm em comum?
–
Foram escritos em português, não é? – arrisca Sílvia.
–
Sim – responde Irene.
–
Por que será então que eles vão se tornando cada vez menos compreensíveis para
um brasileiro no início do século XXI? – quer saber Vera.
–
Porque toda língua, além de variar geograficamente, no espaço, também muda com o tempo. A língua
que falamos hoje no Brasil é diferente da que era falada aqui mesmo no início
da colonização, e também é diferente da língua que será falada aqui mesmo
dentro de trezentos ou quatrocentos anos!
–
Parece lógico – comenta Sílvia. – Todas as coisas mudam, os costumes, as
crenças, os meios de comunicação, as roupas... até os bichos evoluíram e
continuam evoluindo... Por que a língua não haveria de mudar, não é?
–
É por isso – prossegue Irene – que nós linguistas dizemos que toda língua muda e varia.
Quer dizer, muda com o tempo e varia no espaço. Temos até uns nomes especiais
para esses dois fenômenos. A mudança ao longo do tempo se chama mudança diacrônica. A
variação geográfica se chama variação
diatópica. E é por isso também que não existe a língua portuguesa.
–
Ah, não? – admira-se Emília. – Então o que é que existe?
–
Existe um pequeno número de variedades do português – faladas numa determinada
região, por determinado conjunto de pessoas, numa determinada época – que, por
diversas razões, foram eleitas para servirem de base para a constituição, para
a elaboração de uma norma-padrão.
A norma-padrão é aquele modelo
ideal de língua que deve
ser usado pelas autoridades, pelos órgãos oficiais, pelas pessoas cultas, pelos
escritores e jornalistas, aquele que deve ser ensinado e aprendido na escola.
Vejam bem que eu disse aquele que deve
ser, não aquele que necessariamente é empregado
pelas pessoas cultas. Essa norma, ao longo do tempo, se torna objeto de um
grande investimento...
–
Investimento, Irene? – pergunta Sílvia. – Como assim?
–
No processo de constituição, de cristalização da norma-padrão como o que deve ser “a” língua, ela é analisada pelos
gramáticos, que escrevem livros para descrever as regras de funcionamento dela,
livros que servem ao mesmo tempo para
prescrever essas
regras, isto é, impor essas regras como as únicas aceitáveis para o uso
“correto” da língua. Os dicionaristas também se debruçam sobre a norma-padrão e
tentam definir os significados precisos para as palavras que compõem esse
padrão. A Academia de Letras estabelece a ortografia oficial, a maneira única
de escrever, que é imposta por decreto-lei governamental. Ela também cuida para
que as palavras de origem estrangeira não “contaminem” excessivamente a língua,
e propõe novos termos para substituí-las, termos com uma forma mais próxima
daquilo que os tradicionalistas chamam de “a índole da língua”. Os autores de
livros didáticos preparam seus manuais escolares pensando em estratégias
pedagógicas eficazes para que as crianças aprendam a norma-padrão... Todo esse
trabalho de padronização,
de criação e cultivo de um modelo de língua, é que compõe o tal investimento de
que eu falei... Por isso a norma-padrão dá a impressão de ser mais rica, mais
complexa, mais versátil que todas as demais variedades da língua falada pelas
pessoas do país. Na verdade, ela nada tem de melhor que
essas variedades, ela só tem mais que as outras.
–
E o que é que ela tem mais que as outras? – pergunta Sílvia.
–
Por causa do tal investimento, a norma-padrão tem principalmente mais palavras
eruditas, tem mais termos técnicos, tem um vocabulário maior e mais
diversificado. Ela também tem mais construções sintáticas consideradas de bom
gosto, tem expressões de origem erudita que servem de modelos para serem
imitados, metáforas clássicas que dão um ar “nobre” à linguagem... Mas se esse
mesmo investimento fosse aplicado a qualquer uma das muitas variedades faladas
no país, ela também se enriqueceria e se mostraria capaz de ser veículo para
todo tipo de mensagem, de discurso, de texto científico e literário...
[...]
BAGNO, Marcos. A língua de Eulália –
novela sociolinguística. 9. ed. São
Paulo: Contexto, 2001. p. 17-23.
Divina comédia:
poema épico de Dante Alighieri.
brio:
orgulho.
pigarrear:
arranhar a garganta.
ATIVIDADE DE HOJE
1
A língua de Eulália é,
segundo seu autor, uma “novela sociolinguística”. Nela, as personagens
fictícias expõem conceitos e teorias sobre a língua. No trecho que você leu é
apresentado um conceito de norma-padrão.
a)
Identifique-o.
b)
A personagem Irene concorda ou não com
esse conceito? Justifique.
c)
E você, o que pensa sobre isso?
2
De acordo com o texto, o que contribui
para a existência de uma norma-padrão? Copie no caderno as
alternativas corretas.
a)
A descrição e a prescrição das regras de
determinada variedade pelos gramáticos.
b)
O registro dos significados precisos das
palavras que compõem esse padrão pelos dicionaristas.
c)
O estabelecimento da ortografia oficial
pela Academia Brasileira de Letras.
d)
O uso da norma-padrão pelos setores
dominantes: academia, falantes cultos e de posição social elevada.
e)
A proibição legal de outras variedades
consideradas erradas.
3
Em uma passagem do texto há uma definição
para o conceito de mito. Identifique essa definição e registre-a no caderno.
4
Leia as afirmativas de I a VIII e
indique no caderno, em relação a cada uma, se:
a)
a afirmativa confirma a tese defendida
pela personagem Irene;
b)
a afirmativa contradiz a tese defendida
pela personagem Irene.
I.
Há uma unidade linguística no Brasil.
II.
A norma-padrão é a melhor variedade linguística.
III. Não existe uma variedade linguística superior a outras.
IV.
Se houvesse investimento, qualquer variedade poderia ser considerada
padrão.
V.
A norma-padrão é uma das variedades linguísticas.
VI.
A norma-padrão é um modelo que deve ser seguido por todos os falantes.
VII. A língua muda com o tempo e varia no espaço.
VIII. O conceito de certo e errado em relação ao uso da língua
está fundamentado em preconceitos linguísticos e sociais.
5
Qual é o sentido do subtítulo “O mito e a
realidade; o errado e o diferente; o eu e o outro”?
6
Leia:
Caldeirão
de povos
As
diferenças entre o português falado no Brasil e em Portugal demonstram se
tratar de variedades de uma mesma língua. Essas diferenças (lexicais,
sintáticas e morfológicas) são exemplos da variação histórica e regional. A
origem da língua portuguesa foi estudada no capítulo 8, na frente Integrando
linguagens.
[...]
se há semelhanças entre a língua do Brasil de hoje e o português arcaico, há
também muito mais diferenças. Boa parte delas é devida ao tráfico de escravos,
que trouxe ao Brasil um número imenso de negros, que não falavam português. “Já
no século XVI, a maioria da população da Bahia era africana”, diz Rosa Virgínia
Matos e Silva, linguista da Universidade Federal da Bahia. “Toda essa gente
aprendeu a língua de ouvido, sem escola”, conta. Na ausência de educação formal,
a mistura de idiomas torna-se comum e traços de um impregnam o outro. “Assim,
os negros deixaram marcas definitivas”, ressalta ela.
Também
no século XVI, começaram a surgir diferenças regionais no português do Brasil.
Num polo estavam as áreas costeiras, onde os índios foram dizimados e os
escravos africanos abundavam. No outro, o interior, onde havia sociedades
indígenas. À mistura dessas influências vieram se somar as imigrações, que
foram gerando diferentes sotaques. [...]
BURGIERMAN, Denis Russo. Falamos a língua de Cabral? Superinteressante. São Paulo: Abril, abr. 2000. p. 48.
De acordo com o trecho, que povos contribuíram para a
diferença entre a língua portuguesa do Brasil e a língua portuguesa de
Portugal?
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